sexta-feira, 23 de abril de 2010

Ninguém sorri no Morro dos Prazeres ou pequeno relato de um mundo escroto

Ninguém sorri no Morro dos Prazeres ou pequeno relato de um mundo escroto

Ricardo Kubrusly






Hoje, comendo um acarajé de Teresa, em silêncio, entristecidos com as ladeiras de Santa, onde ninguém sorri no Morro dos Prazeres, ouvíamos, uns dos outros, os relatos dos acontecimentos. Que muitos morreram e isso é triste, que alguns pedaços do Morro estavam ainda muito inseguros e isso é triste, que os bombeiros foram incansáveis e que longe dos holofotes iluminavam as esperanças parcas e resistentes que brotavam da lama espessa, que a população amedrontada perguntava pelo seu próprio destino, que o mundo não era justo, que a justiça dos deuses era distantemente inexistente e que a homens, pateticamente tardia . Um morador do bairro, de pé, cansado por tanto trabalho e por tão longos dias, desassossegado, atravessou por entre o aroma baiano e os olhares incrédulos, com suas palavra:
... pensa bem... eu dôo um casaco prum fodido q está faminto e com frio e que mora num morro desabando e que está apavorado e que precisa muito muito muito muito da porra do casaco que eu não preciso e que dou para ele. A prefeitura, então se apossa do casaco q eu dei pro fodido e anuncia do alto dos seus holofotes: só te dou o teu próprio casaco se me deres o q te resta e q é a terra do teu barraco.....
Meu deus isso não pode estar acontecendo. Não, isso não pode estar acontecendo!

Mas está, debaixo do nosso nariz universitário e acomodado, dentro de cada morro desabado de cada alma sobrevivida.
Ora ora ora, temos de nos mobilizar, como sempre, temos de nos mobilizar eu digo, meio impotente, meio atônito, meio inacreditando, mas como, se nossas comunidades mais conscientes estão tão gordas e impregnadas de lógicas tão perversas que já não mais se movem? Não conseguem mais mexer a bunda gorda na qual se transformaram.

... dentro do mundo escroto de lama e poder sob, o fogo cerrado dos prazeres consumidos, serrando os saberes e seus equívocos, debaixo da terra e na superfície crônica e descalça da vida, onde a ética dá lugar à esperteza e onde, como nos ensinava a Santa que nos dá seu nome e que nos nega agora sua proteção: mesmo tudo não é nada. Na lama podre dos nossos governantes, na desfaçatez escrota de suas atitudes mais pequenas, o pobre, o operário, sempre esquecidos e agora esculachados hão de gritar nossas revoltas. Dentro do que restar de dignidade, nessa comunidade entristecida e sem prazeres que se vê forçada a trocar terreno por casaco velho.
Não, isso não pode estar acontecendo.

... e se de nossa indignação não surgir nada para além da própria indignação, acabaremos desindignados, como robôs sorrindo em meio a um mar de formigueiros.

Nenhum comentário:

Postar um comentário