sexta-feira, 23 de abril de 2010

Princípio Esperança

Princípio Esperança



Cinda Gonda



Pois a mão vagarosa no capô dos carros como se afagasse a crina dum cavalo. Vêm mortos de sede. Julgo que se perderam no deserto e o seu destino é apenas terem pressa. Neste emprego, ouço o ruído da engrenagem, o suave movimento do mundo a acelerar-se pouco a pouco. Quem sou eu, no entanto, que balança tenho para pesar sem erro a minha vida e os sonhos de quem passa?

Carlos de Oliveira

Há quase três décadas, a Universidade Federal do Rio de Janeiro iniciava um processo que se pensava irreversível - a sua democratização. Departamentos, Direções, Decanias e, posteriormente, a Reitoria passariam por profundas transformações. A ação dos movimentos organizados, ADUFRJ, SINTUFRJ, DCE Mário Prata, tornou-se decisiva para consolidação de tais conquistas. O país acompanhava o mesmo quadro de inquietação política, chegando finalmente às eleições diretas.

Alguns tropeços, algumas “pedras no meio do caminho” não foram capazes de destruir a excelência do que se realizava na Instituição - a pesquisa, o alto padrão de seu ensino e a qualidade da extensão. A crônica ausência dos recursos, os salários que velozmente se degradavam não impediram que a UFRJ resistisse e se desenvolvesse. Pensando na ampliação de vagas discentes, várias unidades instituíram cursos noturnos, aquelas, onde ainda não existiam, se orientariam no sentido de sua implementação. Ou, através da extensão, fortaleciam os laços com o ensino da rede oficial através de cursos de inclusão digital, dentre outros. Esperava-se que tais metas fossem acompanhadas dos recursos financeiros sem os quais nada ganha corpo e avança. Esperava-se que o quadro de funcionários da UFRJ, docentes e técnicos administrativos, se revigorasse com a devida reposição de vagas. Que a carreira docente, conquistada com tantas lutas, fosse respeitada, mantendo-se as 40horas com DE. Sabe-se que a implantação da dedicação exclusiva fortaleceu os professores, possibilitando-lhes a fixação e conseqüente produção nas respectivas unidades.

Foi, portanto, um duro golpe a forma pela qual não só o ensino de 3º grau, mas os de 2º e 1º graus receberam o novo PDE.

Em relação à Universidade, ao invés desta apresentar a totalidade das contribuições elaboradas ao longo dos anos por suas unidades, o governo impunha, para obtenção de recursos, uma adequação aos planos e metas por ele concebidos. Com um teor fortemente populista, o MEC condicionava a alocação de recursos àqueles que se comprometessem a resolver o problema da evasão estudantil, que duplicassem o número de vagas discentes. Tudo isto acompanhado, evidentemente, de uma política de congelamento de salários.

Por que um plano nacional de educação não foi apresentado ao país como um projeto a ser amplamente discutido por todos os segmentos da sociedade, e sim como

decreto? A pergunta não deveria ser formulada. Sabemos que há tempos nos transformamos em meros executantes de ordens. Como não tomamos parte das decisões fundamentais, responsabilidades desaparecem e, deste modo, se instala a alienação. Problemas deixam de nos dizer respeito, porque deles não participamos. Parece localizar-se aí a “lógica” de tal decreto.

Há muito, algo que se convencionou designar “sistema” rege nossas vidas. Não conseguimos identificá-lo, não possui rosto pelo qual o reconheceríamos. Por razões óbvias, sua sede não se situa em Brasília. Afinal como lembra Lídia Jorge, romancista portuguesa, “O tirano atomizou-se. Ele é o sapato que calçamos, o cigarro que fumamos, a camiseta que vestimos. E quem poderá atirar nos bens que consumimos?”.

Para quem viveu o desmonte da rede oficial de ensino, sabe o quanto de esforço foi necessário para que colégios do porte de um Pedro II, para citar apenas um exemplo, dentre tantos, se reestruturasse. Professores, funcionários e alunos uniram-se e obtiveram êxito na empreitada. Talvez se os grandes senhores da educação, um dia tivessem entrado numa sala de aula do ensino básico, investigassem as reais condições das escolas distantes ou não dos grandes centros urbanos, não se revelassem tão arrogantes em seus desígnios. Fechados em seus laboratórios, apertando botões que lhes garantam a excelência de seus programas, se apartam da realidade que os rodeia. Alguém estabelece um número, sinônimo de qualidade, 7, por exemplo, e eis que tudo irá girar para se atingir tal meta. Conhecessem a troca de idéias entre Álvaro de Campos e Alberto Caeiro, (heterônimos pessoanos) sobre a finitude e a infinitude da vida, talvez alterassem a visão de mundo, aprenderiam com o último, Mestre Caeiro, que “números são apenas números, e nada mais”. Mas é fato também que a palavra Mestre, no sentido autêntico do termo, há muito abandonou o nosso vocabulário. Mestre, hoje em dia, é aquele que conclui sua graduação, e que, depois de dois anos, determinou a Capes, com uma dissertação de pouco mais de 50 páginas assim se intitula.. O que é pior: acreditam! São induzidos a acreditar... O conhecimento cedeu lugar a títulos. O exemplo maior se encontra no Ministro para assuntos a longo prazo que tem, como assessores, ex-alunos, que defenderam tese sobre as suas idéias, com salários de 8 mil reais. Enquanto o plano de governo acena com um “teto” para professores da rede de 800 reais, tão elevado, que necessita de ser atingido apenas em 2010.

Discussões travadas nas Unidades, de forma consciente, para alteração de currículos, são descartadas, porque segundo o ministro, tudo isto tem de ser modernizado, pois o que vigora vem do século XIX. É realmente muito arcaico, para uma universidade criada no século XX. Só falta a proibição em sala de aula de textos medievais... Devem cheirar a mofo. Bem, se tudo isso se devesse apenas a uma mentalidade nacional, poderíamos até entender. Afinal, como diz o ditado, “roupa suja se lava em casa”. Mais uma vez, impõe-se o projeto do colonizador. Só que agora, não será o diabo que, expulso da Europa pela Inquisição, irá procurar abrigo nas terras do Novo Mundo. Não! Anchieta não terá de mentir, criando um auto em que ele, o diabo, roubara o capote aos homens e por isso os índios que viviam nus doravante teriam de esconder “suas vergonhas”. O diabo, hoje, é o pensamento. É o que querem nos usurpar. E é contra isso, ou, se preferirem, a favor do pensamento, que nos rebelamos. Daí que considerem demoníacos a todos aqueles que, não com uma certa coragem, mas com a coragem certa, se insurgem contra a destruição do pensar, de, sempre que necessário, roubar como Prometeu o fogo do conhecimento - por amor à humanidade. Duas palavras de Prometeu, talvez nos inspirem: a primeira, quando se dirige a Hermes, dizendo preferir mil vezes estar agrilhoado por ter ousado libertar os homens a ser apenas um mero mensageiro entre os deuses. A segunda, quando, indagado pelo coro das ninfas, acrescentou o que podia deixar de herança aos homens: a esperança. A confiança infinita no futuro.

Aos poucos que estão a decidir, enclausurados em suas convicções, fica a sugestão do poema: “quem sou eu, no entanto, que balança tenho para pesar sem erro a minha vida e os sonhos de quem passa?” Mas, infelizmente, no plano da ortodoxia não há espaço para dúvidas.


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